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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O meu impossível – Florbela Espanca

Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!


Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...


Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...


Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...

domingo, 30 de outubro de 2011

O bobo da corte - Autoria própria

Tu fazes rir sem dó dos poderosos
Dize-lhes a verdade num espelho
Deformado p´lo real, mas anguloso
Detalhe visto pelo teu evangelho

Cortejas os perigos, audacioso
Sempre que deixas tais nobres vermelhos
Tua ironia é mortal, oh belicoso
Os atacados ficam nus, de joelhos

Conheces as intrigas palacianas
Nelas navegas com habilidade
A espada de um te salva da arma de outro

Após os risos resta-te a profana
Vida oca de quem vive da crueldade
Rei dos risos, da própria alegria indouto

Psicologia de um vencido – Augusto dos Anjos

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

sábado, 29 de outubro de 2011

O sacerdote - Autoria própria

Dedicou anos preciosos da sua vida
Ao mais profundo estudo do evangelho
De renúncia em renúncia sua jazida
De virtudes formou-se antes de velho

A palavra de Cristo, suas feridas
Na cruz donde jorrou o sangue vermelho
Eis o exemplo, a medida que valida
Toda a carne esfolada nos seus joelhos

Porém o mundo é próximo e o pecado
Insinua-se dia após dia na sua mente
A tentação da carne não se afasta

E na sua fortaleza, o que é errado
Sabe penetrar pelo ambivalente
No orgulho da virtude ele se alastra

A prostituta - Autoria própria

No ápice da beleza, a fulgurância
A magia feminina que domina
Co´a volúpia alheia faz a sua mercancia
Seus dotes naturais, eis a sua mina

Corpo, voz, tato, gesto, sua fragrância
Componentes do todo que alucina
Quando ama, ainda que sinta repugnância
Sacia a ânsia de um ser tal Messalina

O tempo passa e passa a natureza
Ficam as cicatrizes do passado
Os abraços, os beijos, confidências

São escassos no ocaso da beleza
Não há afago no ego ora malfadado
Acariciou. Restou-lhe só a carência

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Juca Pirama - Gonçalves Dias

I


No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos — cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.


São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!


As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.


No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d'outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.


Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: — de um povo remoto
Descende por certo — dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.


Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras: — no extenso terreiro
Assola-se o teto, que o teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem do vaso das cores,
Dos vários aprestos da honrosa função.


Acerva-se a lenha da vasta fogueira,
Entesa-se a corda de embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.
Entanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.



II


Em fundos vasos d'alvacenta argila
ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
jamais verá!


A dura corda, que lhe enlaça o colo,
mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
do que o festim!


Contudo os olhos d'ignóbil pranto
secos estão;
Mudos os lábios não descerram queixas
do coração.
Mas um martírio, que encobrir não pode,
em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto
na fronte audaz!


Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
no passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
folga morrendo.


Folga morrendo; porque além dos Andes
revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
da fria morte.


Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,
lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares,
o raio ofende!


Que foi? Tupã mandou que ele caísse,
como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado
esmoreceu!


Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes
revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
da fria morte.



III


Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras.
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a ivirapeme,
Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo


Colar d'alvo marfim, insígnia d'honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d'imigos feros.


“Eis-me aqui, diz ao índio prisioneiro;
“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
“As nossas matas devassaste ousado,
“Morrerás morte vil da mão de um forte.”


Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
“Dize-nos quem és, teus feitos canta,
“Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.



IV


Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.


Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.


Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.


Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes — escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.


E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz


Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.


Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d'espinhos
Chegamos aqui!


O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu'ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.


Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego,
Qual seja — dizei!


Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.


Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixa-me viver!


Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.



V


Soltai-o! — diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo,
— Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
— És livre; parte.
— E voltarei.
— Debalde.


— Sim, voltarei, morto meu pai.


— Não voltes!


É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
— Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
— És livre; parte!


— Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.


— Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precipite. - Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio,
Espectro d'homem, penetrou no bosque!



VI


— Filho meu, onde estás?


— Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões: tomai-as,
As vossas forças restaurar perdidas,
E a caminho, e já!


— Tardaste muito!


Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!


— Sim, demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!


— Que novos males


Nos resta de sofrer? — que novas dores,
No outro fado pior Tupã nos guarda?
— As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.


— Mas tu tremes


— Talvez do afã da caça...


— Oh filho caro


Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!... — E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tateando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal correu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo: — foge, volta,
encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!


— Tu prisioneiro, tu?


— Vós o dissesses.


— Dos índios?


— Sim.


— De que nação?


— Timbiras


— E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebraste a maça...
— Nada fiz... aqui estou.


— Nada! —


Emudecem;


Curto instante depois prossegue o velho:
— Tu és valente, bem o sei; confesso,
Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo!
— Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia...
— E depois?...


—Eis-me aqui.


—Fica essa taba?


— Na direção do sol, quando transmonta.


— Longe?


— Não muito.


— Tens razão: partamos.


— E quereis ir?...


— Na direção do ocaso.



VII


“Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedesses
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis — e mas foram
Senhores em gentileza.


“Eu porém nunca vencido,
Nem os combates por armas
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Manda! vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por pai se ufane!”


Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com torvo acento:
— Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. —
Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!



VIII


“Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.


“Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!


“Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.


“Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde festas como asco e terror!


“Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.


“Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sé maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."



IX


Isto dizendo, o meserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservara,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho para.
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!
— Esse momento só vale apagar-lhe
Os tão compridos transes, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.
Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.


A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem.
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.


Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.


— Basta! clama o chefe dos Timbiras,
— Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. -
O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
“Este, sim, que é meu filho muito amado!


“E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
“Corram livres as lágrimas que choro,
“Estas lágrimas, sim, que não desonram.”



X


Um velho Timbira, coberto de glória,
guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!


E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Dizia prudente: - “Meninos, eu vi!
“Eu vi o brioso no largo terreiro
cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
parece que o vejo,
Que o tenho nest'hora diante de mim.


“Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"


Assim o Timbira, coberto de glória,
guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Tomava prudente: "Meninos, eu vi!”

Tributo a Carlos Drummond de Andrade - Autoria própria

Caminho, pedra, poeta
Senão que o poema espeta

O poeta no caminho
Misterioso e sozinho

Ninguém entende a pedra
Que não se desempedra

Porque somente o poeta
Sabe o que a pedra afeta

Carlos Drummond viu a pedra
No poema que ainda medra

Batalha aberta pelo lirismo - Autoria própria

Todo poeta se acha um arquiteto
Pensa que no poema tudo pode
Porém o artesão Metro lhe acode
E logo põe o poema no seu teto

Pois só assim cabe toda alegria
E Carlitos com clara pureza
No cultivo dessa teogonia
É que se colhe rara beleza

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A alegre palavra quis entrar no verso.
Ouviu:
- És oxítona?
-Com quem rimas?
Fugiu.
Desceu para brincar com uma criança.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Como eu não possuo – Mário de Sá-Carneiro

Olho em volta de mim. Todos possuem
Um afecto, um sorriso ou um abraço,
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço

Roça por mi, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente
São êxtases da cor que eu fremiria
Mas a minh´alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei...perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu;
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado d´alma e sem saber fixar-me
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Escavação - Mário de Sá-Carneiro

Numa ânsia de ter alguma cousa,

Divago por mim mesmo a procurar,

Desço-me todo, em vão, sem nada achar,

E a minh´alma perdida não repousa.



Nada tendo, decido-me a criar:

Brando a espada: sou luz harmoniosa

E chama genial que tudo ousa

Unicamente à força de sonhar...



Mas a vitória fulva esvai-se logo

E cinzas, cinzas só, em vez de fogo...

- Onde existo que não existo em mim?



.....................................................

.....................................................



Um cemitério falso sem ossadas,

Noites d´amor sem bocas esmagadas –

Tudo outro espasmo que princípio ou fim...

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Desnuda - Autoria própria

Não se dispa ainda

Quero me despedir

De sua roupa



Não me ofereça

Deixe-me conquistar

Sua intimidade



Resista

Peça a peça

Recuse meus beijos

Se necessário



Não ceda à tirania

Das minhas mãos



Esconda os elogios

Acordados

Pela lascívia



Lute

Mas não se esqueça

Só venceremos

Se perdermos

domingo, 23 de outubro de 2011

Despedida inesperada - autoria própria

No quebra-cabeças falta uma peça
Não há tapete para se empurrar a poeira
O castelo de areia ainda não está pronto
O baralho ainda está misturado na mesa
Esgotaram-se as economias da ampulheta
Calou-se a tinta da caneta
Só cabe mais uma palavra no elevador:
Tchau!

Fogo-fátuo – Olavo Bilac

Cabelos brancos! dai-me, enfim, a calma
A esta tortura de homem e de artista:
Desdém pelo que encerra a minha palma,
E ambição pelo mais que não exista;

Esta febre, que o espírito me encalma
E logo me enregela; esta conquista
De idéias, ao nascer, morrendo na alma,
De mundos, ao raiar, murchando à vista:

Esta melancolia sem remédio,
Saudade sem razão, louca esperança
Ardendo em choros e findando em tédio;

Esta ansiedade absurda, esta corrida
Para fugir o que o meu sonho alcança,
Para querer o que não há na vida!

sábado, 22 de outubro de 2011

Língua portuguesa - Olavo Bilac

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Sonetos bíblicos - Autoria própria

I
Do oriente uma estrela anunciou a vinda
Do menino Jesus em casa discreta
Três magos e a homenagem merecida
E a fúria do rei Herodes foi desperta

Ouro, incenso e mais mirra, mas sua vida
Estava em risco, e a ameaça era concreta
Sua família armou rápida partida
A fuga para o Egito após o alerta

E Herodes promoveu hedionda matança
Viu-se jorrar o sangue de inocentes
Pequenos anjos co´ a idade de Deus

Co´a morte do perverso e sua vingança
Há a volta para a terra dos parentes
A família retorna ao povo hebreu

II
Tempos após, Jesus foi até o deserto
Foi tentado p´lo diabo, este maldito
Jejum e fome, pedra em pão, o objeto
A tentação primeira não foi mito

Segunda tentação, segundo veto
Atirar-se do alto ao chão pois está escrito
Que Deus o salvaria deste projeto
Mas Jesus disse não ao senhor desdito

Então o diabo ofertou os reinos da terra
Ao nosso senhor, com todas riquezas
Bastando para tanto o seu louvor

Jesus disse não para o que só erra
Foi fiel a Deus pai, vera fortaleza
O Deus que nos devota todo amor

Como encontrar palavras para a beleza – Autoria própria

Como encontrar palavras p´ra a beleza
Que está além das hipérboles de um poema
Sequer sílaba de ouro teria a alteza
Da graça e formosura desse tema

Pois encontro-me então nesse dilema
De ver sem descrever tal esbelteza
Por mais que busque o mais belo fonema
É mais bela ainda a própria natureza

Dedico-lhe então versos esforçados
Co´o carinho de quem muito lhe admira
Em silêncio eloquente mas discreto

Que esse meu grito mudo e ora alforriado
Seja lido por seus olhos diletos
Último anseio do poema que suspira

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Enivrez-vous - Charles Baudelaire

Il faut être toujours ivre. Tout est là: c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve. Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.

Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront:

"Il est l'heure de s'enivrer! Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise."

Embriaguem-se - Tradução livre

É necessário estar constantemente embriagado. Está é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do tempo que faz pender para a terra, é necessário embriagar-se sem cessar. Mas de quê? De vinho, poesia ou virtude, à escolha. Mas embriaguem-se.

E se alguma vez sobre os degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, dentro da solidão morna de seu quarto, vocês despertarem com a embriaguez já diminuída ou extinta, perguntem ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntem que horas são e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, lhes responderão:

“É a hora de embriagar-se! Para não ser um escravo martirizado pelo tempo, embriague-se; embriague-se sem cessar! De vinho, poesia ou de virtude, à escolha."

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Sábado de carnaval - Autoria própria

Taranranranranranram
Tararanranranranran
Taranranranranranram
Tararanranranranram
Taranranranranranranranram
Taranananranranaram
TAN...

Frevo, folia
Sol, sombrinha
Olinda, que linda!
Onomatopeia perdida
Bêbada, vadia
Vagueia pelas ladeiras
Entre bonecos de madeira
Com o frevo retumbando

E sobe, e desce e vem
E aperta, e solta, e estica
E beija, e foge e corre
E bebe, bebe, bebe
Sem nada entender

O sol que castiga a tez
Que queima e bronzeia
A gata molhada
Com água e cerveja
Que escapa lisa
Dos beijos que se perdem
No ar

E o vendedor que vende e assiste
Ganha o pão com a cerveja
E embora ele esteja
Ainda trabalhando

Por dentro ele pula
Cobiça a menina
Que compra uma bebida
Fermentada
8:30 da manhã

Na sua blusinha
Branca
Que mais mostra que esconde
Ufana o desejo
Profana o juízo
E concita o herege
Folião
A perder a linha
Nem que vejam
Nem que seja
Nem que esteja
No meio
Da multidão

Neste segmento da hora
Sem demora
O álcool já fermenta
A imaginação

Cogito, ergo sum
Penso, logo existo
Bebo, logo existo
Bebo, logo insisto
Bebo e não desisto
Penso e insisto
Peço, não desisto
De beijar a foliã

E a moça toda prosa
Sente-se a rainha
Disputada
Rapunzel no chão
Com cabelos desgrenhados
E seus olhos bêbados
Perdeu a contabilidade
Dos beijos dados

O casal recém-agarrado
Renhidos numa disputa
Enredados num abraço
Na luta por um beijo
Ele quer, ela refuga
Ele tenta, ela finta
Ele esquenta, ela apaga
Ele aproxima, ela esgrima
Com o meneio de seu rosto

E nesse breve devaneio
Num momento desprevenido
Ela vacila e o atila
Ele beija e ela deixa

No entanto,
Enquanto
Ele comemora
O desenlace
Ela oferece sua face
Para o desembarque de um beijo alheio
E segue navegando
Na nau doutro pirata

Tararararararnaram

O bêbado Platão
Filósofo de botequim
Arrota erudição
Roubada de livros
Que não leu

Confunde Derrida com Sartre
Conclama Che e Lampião
Culpa o capitalismo
Cita Nietzsche
E espirra

Cogito, ergo sum
Bebo, logo sou bebum

Mas estamos em Olinda
Vendo o Recife
Perto do berço
De Manuel Bandeira
E do ataque do Carrossel
Holandês

Pois lá vêm os gringos
Brancos, vermelhos
Não entendem por que pulam
E de onde pululam
Tantos foliões

E o menino que trabalha
No sol, no som, na rua
No barulho, no aperto
Com orgulho
Da multidão

Que venera sua Olinda
Que visita suas Igrejas
Que veleja no Recife
Que valoriza a cerveja
Que ele vende

Taranranranranranram
Tararanranranranram

E lá vêm os bonecos
Bonecos gigantes
Imponentes
Majestosos
Resistem ao sol
Rasgando caminho no reino de Momo

Eles balançam e seguem
Marchando com feição invariante
Varando a colmeia de gentios
Com o frevo no front

Ali no meio
Um homem
Que não delira
É dilacerado pela folia
Retira-se da mentira que vê
Vai para a TV
Ver outra mentira

Afogado em falsidades
Insulado no que sente
Naufragou na multidão
Liberta sua frustração
Num palavrão
E constatações inúteis
Ilusões fúteis
Lamentos moucos
Doestos ocos
Discurso louco

Todos sabem o que se passa
Todos sabem o que se passa
Todos ignoram o que se passa
Todos ignoram o que se passa
Ignaros voluntários
Ignotos vários
Hipnose consentida

E a festa continua

Taranraranraran...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Epigrama - Gregório de Mattos e Guerra - Séc. XVII

I

Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Bailarina - Autoria própria

A graciosidade de teus movimentos
Subjuga a gravidade
Ternura que esparge
De teu rosto delgado

Cintila
Em teus passos
Um espaço
Improvável
Imprevisível
Que congela o instante
Infinito e constante
De um movimento
De tuas pernas

Carregas a dor num sorriso
E concedes à platéia
A generosidade de teus joelhos
Mártires delicados

Poetisa dos palcos
A força em teus pés
Lapida versos na ribalta

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O todo sem parte não é todo - Gregório de Mattos

O todo sem parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo todo

Em todo sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
Um braço que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.

domingo, 16 de outubro de 2011

Resenha, em forma de poema, do livro "Admirável mundo novo", de Aldous Huxley - Autoria própria

No futuro de Ford
Somos todos levados
A pensar e andar
Tal como rebanho
São todos iguais
Os diversos diferentes
Criaturas de uma casta
Que por todos pensa

Na liberdade
Libertinagem
Sexo sem peias
Não há paixão, nem família
Todos filhos do Estado
Antes do berço escolhidos
Designados
Destinos marcados
Tal como gado
de abate

Gens manipulados
Fetos adestrados
Sutil hipnose
A sociedade que se prostra
Mentores do nada
De todos subtraem
A dor, o lamento, a dúvida
A essência da vida

Abole-se a religião
Resta a fé na ciência
Nos dogmas ateus
Nos sacerdotes profanos
Que exorcizam o pudor
E santificam o pecado
Liberdade totalitária
Realidade imaginária

Mas resta uma esperança
Que vive nos selvagens
Na sabedoria do bárbaro
Belo, casto e rebelde
Shakespeare – ainda que morto
É seu mentor amado
Em seus livros o selvagem
Saboreia outras vidas

É dentro desta selvageria
Que reside a civilidade
O amor pela mãe
A paixão pela amada
Num mundo asséptico,
Apenas o selvagem
Reconhece a barbárie

E aqueles que o cercam
Impregnados ficam de selvageria
Revoltam-se contra a estabilidade
De um mundo que desestabiliza
E neles a chama que há
No peito do bárbaro
Agora resplandece forte
Brilhante e valente

A liberdade que eles recebem
Acompanha-os no degredo

O insurreto selvagem
Cansou-se da barbárie
Fugiu do sexo sem culpa
E renegou a paixão
Oferecida
Para o exílio ele foi
Solitário

Mas mesmo a sua solidão
Foi profanada
A civilização insistia
Perseguia o selvagem
E repetiam seus gestos
Mimetizavam a selvageria

Quanto ao pobre selvagem...
Só lhe restava um norte
Só lhe restava uma sorte
Só lhe restava - a morte
No triste mundo admirável

sábado, 15 de outubro de 2011

If – Rudyar Kipling

If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you
But make allowance for their doubting too,
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don't deal in lies,
Or being hated, don't give way to hating,
And yet don't look too good, nor talk too wise;

If you can dream--and not make dreams your master,
If you can think--and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build 'em up with worn-out tools;

If you can make one heap of all your winnings
And risk it all on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breath a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: "Hold on!"

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings --nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much,
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds' worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that's in it,
And --which is more-- you'll be a Man, my son!

Se - Tradução livre

Se você consegue manter sua cabeça enquanto todos em volta
Perderam as suas e lhe culpam,
Se você acredita em si mesmo quando todos duvidam
Mas leva em consideração a dúvida alheia;
Se você pode esperar sem desespero
E, quando enganado, não tentar enganar;
Sendo odiado, não dar razão ao ódio
Porém não parecer tão bom, nem tão sábio;

Se você sabe sonhar, sem perder o senso de realidade
Se você pensa – sabendo que pode estar errado;
Se você pode enfrentar o triunfo e o desastre
Tratando estes impostores da mesma forma;
Se é capaz de suportar que a verdade que disse
Seja distorcida para lhe prejudicar;
Ou ver que as coisas que granjeou na vida se despedaçaram,
Ainda conseguir refazê-las com quase nada;

Se você tem coragem de reunir todas suas conquistas
E arriscá-las num único lance;
Se perder, começar tudo de novo
Sem dedicar um único lamento à sua derrota;
Se você é capaz de se devotar de corpo inteiro
Entregando todas as suas energias que lhe restam,
E perseverar ainda que exausto
Quando o que lhe sobra é apenas o desejo que diz: “Nunca desista”;

Se você pode enfrentar a multidão e manter sua virtude,
Ou mesmo com os reis, não deixar de ser como é;
Se os seus melhores ou piores amigos não podem machucá-lo,
Se todos podem contar com você, mas não para tudo;
Se você pode consagrar ao minuto capital
Segundo a segundo, o melhor de si;
Você receberá o mundo e tudo o que há nele
E o melhor, você será um homem honrado, meu filho!

Vencedor - Augusto dos Anjos

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!


Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.


Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois de um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,


Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pude domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

Vencido - Augusto dos Anjos

No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.


Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!


Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
A vontade do vômito plebeu...


E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A fuga da epifania - Autoria própria


Tateando as palavras
                Lavrei frases soltas
Perdido como quem procura
                               A solução do mundo
               
 Súbito, deparei-me
                               Com a senha de todos os segredos
                Debaixo de um rochedo
                                                               De reminiscências          

                               Um caleidoscópio de engenhos
                                                Latejava
                                               Pulsava
                                               Vibrava
                               Sem que se houvesse tempo
                                               Para o garimpo

                A quintessência dos sonhos
                               Os mapas de constelações inacessíveis
                Tudo estava próximo
                Mas fugia           
Como um feitiço
                               Desperdiçado
               
                O maremoto não preencheu
                               Os sulcos das perplexidades

                Foi-se o turbilhão
                                Restou-me
                Um buquê de versos

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Aniversário - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A criança que fui chora na estrada - Fernando Pessoa

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.


Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.


Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,


Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Soneto amor sem remédio - Autoria própria


Tanto faz se renegas teu desejo
Não encontrarás a cura noutros braços
Esse amor que fizestes em pedaços
Refaz-se na tua mente a todo ensejo

Saibas. Não há sabor num falso beijo
O postiço amor não rompe tais laços
O amor fingido é menos que lampejo
Nunca acharás abrigo em seus abraços

A semente pisada é a que floresce
Esse amor que execraste com furor
Teu açoite tornou mais forte o seu assédio

Creias: o outro amor não te rejuvenesce
Quem procura remédio num amor
Cose um amor que não terá remédio

domingo, 9 de outubro de 2011

Verdade, Amor, Razão, Merecimento - Camões

Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
Têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte;
Mas sabe que o que é mais que vida e morte,
Que não o alcança o humano entendimento.

Doutos varões darão razões subidas;
Mas são experiências mais provadas,
E por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há e que passam sem ser cridas
E cousas cridas há sem ser passadas...
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Sete anos de pastor - Camões

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: — Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Tributo a Castro Alves - Autoria própria

Chicote na tez, terrível agonia
A dor que baila, bruta rudeza
Sorri na travessia cruel sinfonia
Injusto é só ver o mal na realeza

Afasta-te, destino minuendo!
Esconjuro-te lobo da negraria!
Sequer me pedistes, viestes me trazendo
Apenas ao branco tu dás sesmaria! 

Aos meus netos tu reservaste favela
Nos meus pés, há correntes eternamente
Sinto as pedras, bêbado na padaria

Apenas hipocrisia meu futuro entela
Os políticos com promessas somente
A bala perdida que me mataria...

O navio negreiro (Tragédia no mar) - Castro Alves

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.


'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...


'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...


'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...


Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.


Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!


Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!


Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!


Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................


Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!


Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.



II

 

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.


Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!


O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!


Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...



III

 
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!



IV

 
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...


Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!


E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...


Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!


No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."


E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


 
V

 
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!


Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...


São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...


São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.


Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
...Adeus, ó choça do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...


Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.


Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...


Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...



VI

 
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

 
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Poema Pontuação - Autoria própria

O poema é inimigo
Do ponto final.
Ele o apaga
Substitui-o por vírgula,
Adiante, tosse e esbarra
No ponto e vírgula;
Prossegue
Procura a exclamação
Não acha
Perde-se na interrogação

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O Corvo, de Edgar Allan Poe, tradução de Machado de Assis

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O CORVO de Edgar Allan Poe, tradução de Fernando Pessoa

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

Pedido - Autoria própria

Na vida tudo se pede
Menos um beijo
Beijos são desbravados
Na criptografia dum semblante
Os beijos só se entregam
Para quem sabe roubá-los