Total de visualizações de página

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Como Cristo - Antônio Patrício

“Tomai e comei: isto é o meu corpo,
“Tomai e bebei: isto é o meu sangue”

A lua abriu as veias... Preamar!
E tu mesmo está branca como a altura...
A tua carne agora está a sonhar
Contra o meu peito, cheia de doçura.

És doce como a noite, e ao vê-la cuido
Que é o céu uma grande nebulosa
Onde o sêmen lunar escorre fluido
Pela carne da noite — dolorosa...

“Sou toda tua, amor... Já não existo...
Seja sempre o meu corpo o teu pomar;
Bebe o meu sangue e bebe o meu olhar...”

Eu ouço a tua voz e lembro o Cristo,
As palavras que disse em certa Ceia
A uns homens que o seguiram na Judeia...

domingo, 26 de fevereiro de 2012

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Se eu morresse amanhã - Álvares de Azevedo

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Tristeza - Autoria própria

A água desaba da cachoeira
Os olhos não veem as estrelas
O caminho é trilhado por seus pés
Conquanto o chão não seja tocado

A água desaba da cachoeira
A liberdade, velha tirana, domina o caminho
O chão queima-lhe os pés
Arde em seu ventre castigo que lá não cabe

A água desaba da cachoeira
As palavras relutam em lhe obedecer
O espelho nada retrata
E agora, vai José
Consolar-se na dor de outrem
Porque nada é mais humano que a dor
Na natureza, nada se cria,
Apenas o sofrimento transforma
O exílio do bem-aventurado é como moeda
Seu tesouro e seu carrasco

Ninguém é mais liberto que o escravo
A cela é a paladina da liberdade
Senhor, não permita que eu veja
O caminho que por meu pés é trilhado

A água ainda cai da cachoeira
Até quando?

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

To be or not to be - Shakespeare - Tradução de Machado de Assis

SER OU NÃO SER, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos glopes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Ai, eis a dúvida. AO perpétuo sono,
Quando o lodo mortal, despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe.
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem o peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Qe aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta ideia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O poeta e o enxadrista - Autoria própria

O poeta sente
O enxadrista pressente

O poeta confessa
O enxadrista calcula

O poeta se entrega
O enxadrista esmaga

O poeta é ingênuo
O enxadrista é gênio

O poeta procura seu caminho
O enxadrista asfalta o destino

O mais ingênuo dos poetas
Nunca será ludibriado por uma máquina

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Lisbon revisited (1923) - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A faísca - Autoria própria

Ainda que ficasse cada instante que passa
Não passaria um instante que em mim ficasse

Ainda que se cessasse todo o movimento do mundo
Não haveria imobilidade que me aquietasse

Se de todo tempo um tempo me fosse dado
Se de todo tempo a um só tempo eu fosse atado
Nesse remoinho do mesmo, faria a forja da fuga
Na direção de todo oposto
Ao contrário de toda aposta

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Soneto de amor - José Régio

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Esperança - Autoria própria

Como conter a ária de um tormento
No dique da rotina?

Como, se na aridez de cada momento
Há uma matilha de suplícios?

Essa insignificância que tudo ocupa
Preocupa e cala enquanto grita
Achega e foge enquanto me chama
Clama mas cansa, antes do começo do começo
Daquilo que não se alcança

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Cântigo negro - José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A metamorfose da pedra - Autoria própria

De repente brotou da pedra
Uma beleza que não era dela
Uma suavidade que se chocava
Com a aspereza de sua superfície
Uma leveza que deslizava
Num arremesso que não machucaria
A pedra desprezada
Era bela, era fera
Foi feita pedra
Petrificada num poema
Apedrejou quem dantes afagava
E depois se arrependeu
Penosa, asfaltou
O caminho do agredido
Pois a pedra não se arremessou
Era pedra, no seu coração
Não penetrava a maldade

A pedra, de uma pedreira
Pedregosa
Não é dengosa, mas resiste
Não se ilude, não engana
É dura, e insiste
Testemunha a verdade
Ainda que pesarosa

Foi pedra, era pedra
É pedra, mas quiçá,
Num futuro não distante
Não será um diamante?

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Enquanto quis Fortuna que tivesse - Camões

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos!

domingo, 5 de fevereiro de 2012

In vino veritas - Autoria própria

(Antes do remoinho, a fé
Teve sua última véspera
O futuro resistia à fatalidade)

No cálice, o sabor
Acre que renova
A felicidade que se extingue

Na face, a farsa
Que tece uma mentira
Na tensão duma lembrança

Na boca, a palavra
Que se apaga
Na preamar de um riso

Na tez, embriaguez
Correnteza que se faz verbo
No ocaso da verdade

No relógio, crepúsculo e aurora
Do agora que é sempre
Do nunca que é agora

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades - Luís Vaz de Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Momentos - Autoria própria

A ruga sutura o hoje ao ontem
O retrato segura o passado e não solta
A surpresa separa o antes do agora
A esperança é o presente em crescente agonia
O sereno sugere a alvorada...
Enquanto acontece o anoitecer